A história de Chicó: do início à amputação

Chicó era inadotável: vira lata, paraplégico, preto, grande porte e com problemas comportamentais. Tinha tudo para dar errado – escara, amputação, infecção grave – mas quis viver. Veja a história!

Chicó veio à mim em abril de 2020. Mas a história dele não necessariamente começa com ele e, sim, comigo. Petit faleceu em fevereiro de 2019, 10 dias depois da minha filha nascer. Não, não foi coincidência. Ele sabia que eu iria desabar quando ele partisse. Ele esperou um momento que sabia que eu iria me controlar, porque eu tinha que ser forte para a minha filha. E fui. Chorei, sofri. Muito. Me sentia incompleta. Mas não me deprimi porque havia um bebê dependendo de mim. Eu precisava ser forte. E fui.

Em janeiro de 2020, primeiro dia do ano, Enzo resolveu descansar. Alice já estava com quase 1 ano. Daí eu senti. Aí eu caí. Sentia a casa vazia. Sentia Vida muito sozinha e triste. Chorei tudo o que me controlei na época de Petit. Mas levantei. A vida segue… Mas o vazio permanece. 

Me perguntavam se eu não iria adotar algum animal, uma vez que havia vaga aberta na minha casa. Não, não tinha vaga. Não havia vaga da Vida. Não havia vaga do Enzo. O único animal que realmente adotei foi o Petit. Os outros acabaram me adotando, e eu aceitando por não ter muita escolha. Mas racionalmente eu não adotaria. Não tenho e nunca tive condições. Nem logísticas e muito menos financeiras.

Em fevereiro de 2020, então, um ano após a partida do Petit, recebo uma mensagem. Recebo centenas de mensagens diariamente. Por que eu vi aquela? Não sei. Era uma veterinária de uma ong de uma cidade do interior do rio. O que eu tinha a ver com uma ong no interior do estado? Nada. Estava eu fechada, sofrendo a morte de Petit e Enzo, não queria saber de nada. Mas recebi aquela mensagem. A ong tinha resgatado um cão filhote de poucos dias, paraplégico, na estrada. Nasceu assim provavelmente. Ela descrevia o animal como “o mais triste que ela já conheceu em anos de resgate”.

A foto que recebi, de Chicó como foi encontrado na estrada em uma cidade pequena do interior do RJ.

Ela disse que é praxe da ong eutanasiar esse tipo de animal pois é inadotável. A ong estava cheia, não tinha recursos, ainda mais para manter um animal que sabidamente iria “encalhar” lá. Falou que recebeu a ordem para fazer a eutanásia mas resolveu falar comigo antes, como última esperança. Então vamos recapitular… Estava eu mergulhada na minha dor, chega alguém e fala que tem um animal paraplégico que depende de mim para não ser eutanasiado. Peso, né?

Como resistir?

Falei para não fazer, que eu daria um jeito. Não sabia qual, mas daria. Ela, então, prometeu vacinar e castrar o animal e eu tentaria buscá-lo. Não foi preciso. Um mês depois uma protetora da ong trouxe ele para mim. Uma viagem de quase 3 horas. E ela me trouxe também uma imagem de São Francisco. Eu coloquei o nome dele de Chicó, influência de São Francisco, mas lembrando o personagem de Ariano Suassuna, sonso!

Enfim, aqui em casa.

A ideia era levá-lo a uma avaliação com ortopedista, para saber porque ele era paraplégico, se sentia dor, se havia chance de andar, e então colocá-lo para adoção. Mas era o início da pandemia, lockdown. Ele acabou ficando…

ficando…

E ficando…

e ficando…

E ficando…

e conquistando a Vida…

E ficando…

E fazendo muita besteira!

O bem que ele fez para Vida foi inacreditável. E Alice adorou ele. Sonso. Comendo pelas beiradas, sabe? A dinâmica da casa mudou completamente com a vinda do Chicó. Ele devolveu vida à Vida, devolveu vida à casa. Acabou ficando. Até porque, ninguém quis adotá-lo. Ficou. Eu contrariada, mas ficou. Por que contrariada? Porque sou muito racional. Bebê pequeno, não tinha tempo nem para mim, sou professora, não tenho dinheiro… Mas Chicó se “aboletou” na casa assim como Vida fez, assim como Enzo fez: sem me dar escolha. Eu só aceitei. Ainda estou aceitando, para falar a verdade! 

O golpe estava aí. Só não viu quem não quis…

A escara

Um ano se passou. Um ano de pandemia. Surreal, né? Chicó já não era mais filhote. Estava forte, um cachorro de médio a grande porte. Sabíamos que Chicó seria paraplégico para o resto da vida. Mas e daí? Era um cachorro normal. Dominante.

Chicó muito feliz e saudável 1 ano após seu resgate.

Mas uma ferida na pata traseira (que ele arrasta) começou a chamar atenção. Ferida de arraste, coisa mais normal do mundo para animal paraplégico. Comecei a tratar como sempre fiz e faço. Não deu certo, virou escara. Tempo passa, a ferida piora. Levei ao veterinário. Ele condenou a pata, queria amputar no dia seguinte. Pensei muito. Perguntei a outros veterinários, amigos, tutores de animais amputados. Decidi por não fazer. Até aquele momento não era indicativo de amputação. Só porque era paraplégico? Não… Já tratei de escaras piores em animais paraplégicos! Decidi não voltar nele e fazer o tratamento conservador. 

Curativo na escara e cone da vergonha. Ele comia o curativo mesmo com cone. Era muito difícil!

Antibiótico, antiinflamatório, pomada, curativo… Mas não melhorava. Por quê? Vida já teve escaras até piores. Tratei com muito menos recursos e deu certo. Por que não?

Piorou mais. Mandei uma foto para o ortopedista que o avaliou assim que veio para mim. Ele disse que parecia que os ligamentos tinham se rompido e que já estava fraturando o osso. Continuei tratando.

Trocava o curativo e colocava remédio 2x ao dia. A noite, quando fui trocar, vi uma nova ferida, oposta à escara, e que estava cheia (mas cheia!) de larvas de mosquitos (famosa “bicheira”). Oposta à escara. A escara estava limpa. Mas a nova ferida estava com bicheira. Levei ele no desespero, de madrugada, para a clínica do ortopedista para interná-lo. Quem nos acompanha nas redes sociais sabe que a gente mora em área de risco. Só esse processo de sair de madrugada com cachorro e neném já é muito complicado. Mas deu tudo certo!

Chicó quando foi internado, muito magro pela infecção.

No dia seguinte fizeram exames nele e ele estava de alta. A bicheira já tinha sido eliminada. Mas o ortopedista o avaliou ao meu pedido e disse que a pata estava condenada pois a escara já tinha pego os ligamentos, a pata estava solta. Poderia fazer cirurgia de correção? É complicada mas poderia se a pata fosse funcional, o que não era por ser paraplégico. E a pata em si já estava muito machucada com a escara e a ferida posterior da bicheira. Não tinha mais o que insistir. Lutamos até onde deu. Ali, realmente, a amputação era necessária.

A amputação 

A amputação foi feita. Fui com medo, mas fui. É uma decisão muito difícil porque não há um manual, você não sabe efetivamente se o animal irá se adaptar. E se não se adaptar? Não tem como voltar atrás. É uma decisão muito complicada que, definitivamente não desejo a ninguém. Mas eu acho que estava no destino dele… Desde que veio aqui para casa notei a pata dele causando problemas pra ele. A amputação, embora nunca cogitada seriamente, sempre foi uma possibilidade para ele, o que para Vida por exemplo, também paraplégica, nunca se cogitou porque a pata dela nunca atrapalhou. As patas do Chicó sempre atrapalharam ele. Eram hiperflexionadas, duras, prendiam, atrapalhavam a andar. Mas eram as patas dele! Não iríamos submetê-lo a uma cirurgia de grande porte de amputação só porque achávamos que atrapalhava. Foi realmente quando não houve outra alternativa, fizemos, mas com o coração na mão.

As patas hiperflexionadas do Chicó.

A cirurgia foi feita. Eu fiquei muito temerosa quanto a recuperação e adaptação dele. Mas com a certeza que eu não tive mais alternativa. Tratei até onde foi possível. Por que estou salientando isso? Porque na veterinária sempre a solução é amputação ou eutanásia. E até onde for possível, não recomendamos nem um nem outro. É uma decisão sem volta.

Chicó se adaptou super bem. Incrivelmente bem. A nossa impressão que ele tinha que ter nascido sem elas se confirmou: ele ficou muito melhor e mais ágil sem as patas. Mais feliz. Chegou a engordar em pouco tempo! Mas na internação do pós cirúrgico ele ficou com sonda urinária… E o que acontece com animal paraplégico com sonda? Pegou uma infecção urinária.

Pós cirúrgico já em casa.

A infecção multirresistente 

Ok… a primeira de muitas que ele teria na vida paraplégica dele. É tratar e seguir em frente. Mas nada é tão fácil pra gente. Como ele pegou em ambiente hospitalar, a bactéria era raríssima e multirresistente. Temos matérias aqui sobre cistite de repetição e bactéria multirresistente.

Só conseguimos isolar e identificar a bactéria na universidade. Laboratório de análises não conseguiu. E nesse meio tempo, Chicó resolveu prender o rabo em algum lugar, teve uma hemorragia arterial. Corre para o hospital, interna, volta. Dois dias depois ele resolveu comer o próprio rabo. Vértebras pelo chão é uma imagem que não desejo compartilhar com vocês…  Corre para o hospital, interna, amputa o rabo.

E a cistite piora. Só haviam 2 antibióticos para tratar essa bactéria, ambos muito tóxicos e venosos, necessitando de internação. E Chicó ficou 10 dias internado. Assim que acabou o antibiótico, ele piorou gravemente, teve que operar para abrir a bexiga. Estava necrosada e com partes com furos. Havia urina na cavidade abdominal. Chicó estar vivo era um milagre! Mas animais gostam de milagres…

Chicó começou a segunda e última opção de antibiótico. Mais 10 dias internado, melhorando a cada dia. Agora ele está de alta, esperando revisão. Repetiremos a ultrassonografia e urinocultura para ter certeza que a bactéria foi embora. Mas ele está ótimo!

Até onde ir?

Se eu pensei em desistir? Em momento algum! Não cabe a mim desistir por alguém. Se em algum momento eu sentisse nele cansaço, dor, vontade de desistir, eu seria a primeira em pensar em eutanásia. Temos uma matéria sobre eutanásia aqui. Enzo, por exemplo, lutou bravamente por 3 anos sendo uma incógnita para uma junta veterinária. Mas eu lutei. Quando ele estava cansado, internou, eu falei no ouvidinho dele que se ele quisesse partir, que eu iria sentir muito a falta dele, mas que ele poderia ir, que eu sempre iria amá-lo. E ele foi. Horas depois. 

Em momento algum eu sinto culpa por não ter feito alguma coisa por Enzo. Fiz tudo. Me endividei anos! Mas quando ele se sentiu cansado, eu entendi. Um animal partir e você ficar pensando que você poderia ter feito alguma coisa, que poderia ser diferente, é uma dor terrível.

Por mais que Chicó seja inacreditável ele estar vivo, ele sempre quis viver! Sempre foi um filhote terrível, que mordia a todos na clínica, dava “olé” nos enfermeiros correndo (sem patas) pelo corredor. Um seguidor “hater”, vendo uma foto do Chicó recém amputado comentou perguntando “isso é viver?”. No dia seguinte Chicó estava correndo pela casa, invadindo a cozinha e comendo lixo. Olhando para a cozinha toda suja e aquela cara de Chicó “não sei, só sei que foi assim”, parei e pensei… Sim, isso é viver! Pena de quem sabe disso!

Chicó com sede de viver e brincar!

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